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A Transitoriedade - Sigmund Freud (1916) - Uma breve reflexão sobre o fim de ano e seus (des)afetos

     O texto "A Transitoriedade" de 1916 escrito por Freud, é um texto particularmente interessante para mim. Se trata de uma reflexão sobre a efemeridade das coisas, de tudo o que é belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar, parafraseando o próprio Freud. 

    Um jovem poeta que o acompanhava em um passeio por uma bela paisagem em um dia de verão, era incomodado pelo pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim toda beleza humana e tudo o que é belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o que ele teria de algum modo amado e admirado lhe parecia desprovido de valor devido a finitude de todas as coisas. Em uma breve análise Freud busca entender a reação do jovem poeta, que indignado com sua percepção sobre a efemeridade de sua vida e de tudo o que o rodeia, se encontrava angustiado e com "um doloroso cansaço do mundo". Esta reinvindicação de imortalidade das coisas é produto de nossos desejos que não possui um valor de realidade em si. E finalmente chegamos a ideia que desejo discutir com você aqui neste artigo: "também o que é doloroso pode ser verdadeiro" e "valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo". 

    O fato de estarmos neste momento de fim de ano me faz refletir sobre as diversas queixas que chegam ao consultório de um psicanalista nesta época em especial. Chegando no Natal, muitos lamentam suas perdas parentais ou até mesmo de amigos, de pets e seres, coisas ou pessoas que possuíam algum valor afetivo considerável. Isto é totalmente compreensível e não me cabe contestar estes sentimentos, genuínos em sua mais íntima instância, porém porque o Natal nos chega tão carregado por uma  mistura de afetos, ambivalentes e contraditórios em si? Creio eu, que devido a todo valor simbólico que a data possui, de se festejar com família, amigos, pessoas bem quistas por nós como num geral, deixa a atmosfera desta data com um ar melancólico, onde sentimos falta daqueles que já não se encontrar entre nós, ou que poderiam estar porém a distância não permite, mesmo que nos dias atuais temos à disposição meios eletrônicos para enviar uma mensagem ou áudio. Porém isso não é possível com nosso saudoso avô, velho pai ou querida mãe que "jaz no descanso eterno". Não é possível voltar à infância, e correr pelos corredores da casa enlouquecendo os pais ou avós. Também não é possível abraçar a pessoa amada que já se foi, seja para os braços de um outro alguém ou para o "além". Isto nos fere de um forma tão singular que o melhor termo para se descrever este sentimento é o de melancolia. Melancolia de um luto real, ou quem sabe simbólico, fruto de da falta de alguém muito querido, que desejamos de forma genuína que em algum momento acordemos e esta pessoa esteja ali, sorrindo nos desejando um feliz natal, e um próspero ano novo, que é o tema que iremos discutir a seguir. 

    Bom, agora chegamos no mais ambivalente dos dois temas que vou discutir neste artigo, o Ano Novo. Este consegue promover uma síntese de todas as vitórias e as "derrotas" experienciadas no decorrer do ano que se finda. Ele possui em si mesmo a capacidade de reunir inclusive as queixas melancólicas do Natal e ser ainda pior para algumas pessoas. Na realidade o que ocorre é que a terra está completando uma volta completa ao redor do sol neste momento, porém como somos seres pensantes, e acima de tudo desejantes, temos que lidar com nossos afetos e desafetos colecionados ao longo do ano que está passando, e pior ainda, fazemos novos votos e promessas para o que está chegando. A questão aqui é a coletânea de sabores e dissabores que vivemos ao longo dos dias, meses e anos de nossas vidas. Carregamos em nossas memórias (muitas inconscientes inclusive), as marcas que o tempo e eventos nos imprimem, e se durante o ano nos escondemos atrás de nossas  ocupações, estudos, para não pensar naquilo que nos angustia de alguma forma, o recesso de fim de ano nos obriga a estar consigo mesmo e tudo o que isso implica. O princípio da realidade nos coloca diante de um espelho onde não se é possível desviar o olhar e nos vemos obrigados a encarar nossa impotência e até mesmo incapacidade perante os fatos de nossa própria condição humana, efêmera, transitória, mas como Freud diz no texto em que baseio esta reflexão, isto não anula seu valor, pois "valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo". 

    Talvez você não tenha emagrecido 15 quilos, lido 10 páginas de algum livro por dia ou conseguido aquela promoção no trabalho. Mas "também o que é doloroso pode ser verdadeiro", e não temos como fazer a terra dar ré em sua órbita, voltar no temo e fazer diferente. De fato não há como recuperar o tempo que se foi, e nos restam apenas as memórias e seus afetos para darmos conta. É verdadeiro também que não sabemos se estaremos aqui quando o próximo ano chegar, mas se podemos fazer algo, o podemos somente no agora. É possível mudar a rota de algumas coisas tomando diferentes atitudes, tendo outros comportamentos, e o que torna tão valiosa a nossa passagem por aqui é a transitoriedade de nós e das coisas, então se serve de consolo para você, a expectativa de vida tem aumentado cada vez mais, e você pode sim fazer diferente no próximo ano, superar suas faltas, e fazer as pazes consigo e com a vida. Há beleza lá fora e também ai dentro, e o fato do ano, você e todas as coisas terem a mesma sentença de fim, não anula o valor e a raridade de ser quem você é, do agora. Em uma análise podemos vislumbrar como nos relacionamos com a vida e as pessoas, com o mundo, e a partir disso obtemos a oportunidade de gozar destes momentos, acolher nossas dores, validar nossas próprias faltas, e atravessar o passado, para que assim, ele realmente se torne uma memória do que já se foi, e não uma dor do presente, e por fim, compreender o valor do agora e a raridade da vida. 

Comentários

  1. Excelente iniciativa. Parabéns! Ótimo artigo. Quero mais.

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    1. Obrigado professor, aguardamos em breve o seu artigo aqui em nossa nova plataforma ^^

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