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Real, Simbólico e imaginário: Descomplicando Lacan

 

     




    Se você é amante da psicanálise, já deve ter esbarrado em três conceitos que são pilares do pensamento de Jacques Lacan: Real, Simbólico e Imaginário. Embora pareçam complexos à primeira vista, eles podem ser compreendidos de forma simples quando traduzidos para a nossa experiência cotidiana.  A intenção deste artigo é descomplicar os principais conceitos de Jacques Lacan.


O Real: Aquilo que Escapa à Nomeação     


     O Real, em essência, é tudo aquilo que não pode ser simbolizado. Ele está além das palavras, das imagens e da compreensão imediata. É como se sempre houvesse algo que escapa, algo que não conseguimos expressar totalmente, por mais que tentemos encontrar as palavras certas.

    Para tornar isso mais fácil de entender, pense em Deus. Mesmo que tenhamos uma ideia ou conceito sobre Ele, não conseguimos realmente explicar o que Ele é. Até o teólogo mais estudioso percebe que existe uma limitação em nossa capacidade de compreender o divino em sua totalidade.

    Algo semelhante acontece quando tentamos descrever emoções, sentimentos, experiências ou traumas. Por mais que usemos palavras, elas nunca são suficientes para capturar exatamente o que sentimos ou vivemos. Sempre parece faltar algo.

    Também gosto de usar a imagem de um buraco negro para explicar a dimensão do Real. É algo que sabemos que existe, mas não temos ideia do que há do outro lado. É uma região inacessível, onde nosso entendimento e nossa linguagem não conseguem chegar. Essa metáfora ajuda a ilustrar o conceito de Lacan: o Real como aquilo que escapa à simbolização, ao nosso esforço de compreender e explicar.

    Lacan utilizava o termo "resto" para descrever essas partes que fogem à nossa compreensão. Esses "restos" representam aquilo que não pode ser simbolizado nem transformado em linguagem – o que sobra quando tudo o que é possível de nomear já foi dito. Assim, o Real é essa dimensão que permanece fora do alcance, resistindo às estruturas do Simbólico e às imagens do Imaginário.

    Apesar do Real ser uma  dimensão da experiência humana que escapa à linguagem e à compreensão plena, ele não está isolado. Ele é constantemente tocado e moldado pelas outras duas dimensões propostas por Lacan: o Simbólico e o Imaginário. 

     A seguir, exploraremos esses conceitos em maior profundidade.


O Simbólico: A Linguagem 


    Para entender o Simbólico, imagine-o como uma dimensão que nos envolve completamente, como se estivéssemos imersos em um grande oceano de significantes e significados.    

    Tudo ao nosso redor tem um nome e um significado. Quando nascemos, já encontramos tudo pronto: existem definições e conceitos para tudo. É justamente a partir desses conceitos que nos tornamos "alguém".

    Vou explicar de forma mais prática: você se considera honesto, competente, bonito, brasileiro, alto ou qualquer outra coisa porque, em algum momento, esses conceitos foram ensinados a você. Você aprendeu o significado dessas palavras ao ouvir e observar o mundo ao seu redor. Lacan dizia que somos seres de linguagem, e essa linguagem nos oferece conceitos já prontos para compreender o mundo.

    Desde o nascimento, somos inseridos no Simbólico: recebemos um nome, sobrenome, somos batizados. É graças ao Simbólico que conseguimos nos comunicar com o outro, expressar nossas necessidades, falar sobre nossos medos e desejos.

    Freud, Melanie Klein e o próprio Lacan observaram que muitos de seus pacientes enfrentavam problemas graves porque não conseguiam dar nome aos seus medos. Sem um significante, é difícil compreender sentimentos como abandono ou solidão.

    Pense, por exemplo, na experiência de conhecer um grupo de pessoas. Os nomes que você ouve, as perguntas que faz, as respostas que dá – tudo isso pertence ao Simbólico. É nessa dimensão que a linguagem estrutura nossa realidade, nos conecta ao outro e nos dá um mapa simbólico para navegar pela vida.

    No entanto, o Simbólico também tem suas limitações. Por mais que a linguagem seja poderosa, ela nunca é suficiente para dar conta do Real. 


O Imaginário: Espelhos e Identidades   


    Quando falamos em Imaginário, muita gente pensa logo em imaginação. Mas, para começar, já deixo claro: não são a mesma coisa. 

    O Imaginário, no sentido lacaniano, vai muito além da imaginação.

   

    Para entender melhor, gosto de lembrar de uma frase atribuída a Lacan: "O Imaginário é a ilusão da compreensão." Essa frase resume bem o que acontece nessa dimensão. O Imaginário está diretamente ligado à forma como percebemos e interpretamos o mundo, mas essa percepção nem sempre reflete a realidade de forma fiel.

    Pense no Imaginário como o campo das imagens, ilusões e identificações. Ele é o lugar onde criamos as noções sobre quem somos e como nos projetamos no mundo. Aqui entra uma palavra-chave: percepção. O Imaginário diz respeito à maneira como enxergamos as coisas ao nosso redor e a nós mesmos.

    Por exemplo, diante de um acontecimento, mesmo que várias pessoas concordem sobre os fatos básicos, cada uma terá sua própria interpretação, porque todos nós percebemos a realidade através do filtro do nosso Imaginário. E essa percepção é construída a partir das imagens e das identificações que criamos ao longo da vida.

    Por exemplo, quando observamos a vida de alguém nas redes sociais, a percepção que temos dessa pessoa, com base nas fotos e textos que ela compartilha, é uma imagem construída no Imaginário. A pessoa pode estar sempre bem vestida, viajando, cercada de amigos, e isso nos leva a criar a ilusão de que sua vida é perfeita. 

    Essa visão, no entanto, é apenas uma projeção. O que está por trás dessas imagens, no entanto, pode ser completamente diferente da nossa percepção. Esse é um excelente exemplo de como o Imaginário nos engana, criando ilusões que nos fazem acreditar que entendemos o outro, quando na verdade estamos apenas vendo uma parte superficial de sua vida.

    Lacan, em sua teoria do Estádio do Espelho, mostra como esse fenômeno de ilusão funciona desde os primeiros momentos de nossa vida. Quando um bebê se vê pela primeira vez no espelho, ele reconhece aquela imagem como sendo dele. No entanto, aquilo é apenas uma representação – um reflexo – e não a totalidade do ser. O bebê ainda não compreende que a imagem não reflete a totalidade de seu ser. Ele ainda não tem consciência de seu corpo como um todo, dos órgãos internos, da sua personalidade, das suas emoções. No entanto, ele acredita que a imagem no espelho representa quem ele é.

    Isso é um exemplo claro de como o Imaginário constrói uma identidade, muitas vezes baseada em uma ilusão. Ao longo da vida, continuamos a nos enxergar por meio dessas imagens. A idealização do outro, por exemplo, acontece quando nos apaixonamos por uma imagem projetada, pela ideia do outro, e não pelo que ele realmente é. Isso gera uma distorção, e, quando a realidade se impõe, pode ser um dos motivos para o fim de um relacionamento.

    O Imaginário, portanto, é a dimensão onde as imagens, palavras, sensações e pensamentos se entrelaçam para formar nossa visão pessoal do mundo. Ele nos permite construir nossa identidade e nossa visão de realidade, mas também nos coloca em contato com a ilusão, com a distorção daquilo que realmente somos ou que o outro realmente é.

    Em resumo, o Imaginário, para Lacan, não é apenas um lugar de fantasia ou sonho. Ele é um campo essencial para a formação da identidade e da nossa percepção de mundo. Porém, também é o espaço onde as ilusões e enganos são criados, distorcendo sobre o que realmente vemos e sobre o que realmente somos. E é justamente por isso que a compreensão do Imaginário é tão importante.

    Quando entendemos que nossas percepções podem nos induzir ao erro, tornamo-nos mais vigilantes em relação aos nossos julgamentos e atitudes, o que nos ajuda a ter uma visão mais clara e realista de nós mesmos e dos outros.  

    Na clínica, no entanto, não analisamos diretamente o Imaginário, pois não temos acesso à mente do analisando. O que temos à disposição é o Simbólico. Através dele, conseguimos captar e compreender os medos, amores e ideais que estão presentes no Imaginário do paciente.

    Em outras palavras, o Simbólico é a chave para entender o que está sendo projetado no Imaginário, mas de maneira indireta, já que é através das palavras e significados que acessamos as imagens e as ilusões que compõem a identidade do sujeito


A Dança dos Três Registros

    Real, Simbólico e Imaginário não existem de forma separada, eles estão sempre interligados, influenciando tudo o que vivemos e como nos relacionamos com o mundo e com os outros. 

    Lacan, para mostrar como essas três instâncias se conectam, usou várias figuras matemáticas , entre as principais estão a faixa de Möbius e o Nó Borromeano, que simboliza essa interação constante entre o Real, o Simbólico e o Imaginário. Ele queria mostrar que essas dimensões não são compartimentos isolados, mas que se influenciam o tempo todo, como se fossem partes de um único processo contínuo.

    Simbólico, com sua estrutura de linguagem e significados, tenta incessantemente dar nome e organizar aquilo que, no fundo, permanece fora do alcance. É como se buscássemos iluminar o que está nas sombras, mesmo sabendo que nunca veremos tudo com clareza.

    Já o Imaginário, com suas imagens e identificações, oferece um revestimento ao Real, uma tentativa de preenchê-lo com percepções e ilusões, muitas vezes para aliviar o impacto daquilo que é inacessível e desestabilizador.

    O Imaginário também não funciona sozinho, ele depende do Simbólico para traduzir aquilo que percebemos, em palavras. É no Simbólico que encontramos os significantes e significados que dão forma às nossas percepções. Sem ele, seria impossível comunicar ou interpretar o que está no Imaginário.

    No trabalho clínico, tudo o que o paciente traz – seja um sentimento, uma situação, um desejo, um conflito – pode ser analisado a partir dessa tríade: Real, Simbólico e Imaginário. Ou seja, qualquer questão pode ser abordada sob a perspectiva desses três registros, ajudando a entender como a experiência do paciente se constrói e se organiza. Cada instância traz algo único para o processo de análise, mas elas estão sempre presentes, se misturando e se refletindo uma na outra.


Considerações Finais

    Encerro aqui a introdução aos conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, elementos fundamentais no estudo de Lacan. Meu objetivo foi apresentar esses conceitos de forma simples e acessível, desmistificando uma abordagem que costuma ser vista como muito complexa. Espero que este artigo tenha sido útil para você. 

    Nos encontramos nos próximos textos, onde seguiremos falando sobre nossa amada psicanálise.


Referências: 

Lacan, Jacques. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1973.

Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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